Este Zé Gotinha maquinado é mais um capítulo no errático esforço do Governo Bolsonaro de reverter os prejuízos políticos, sanitários e econômicos provocados por um ano de negacionismo com relação à pandemia. Em um momento no qual o país bate recordes sucessivos de mortos pela covid-19, a economia está em parafuso e os índices de popularidade do presidente seguem caindo segundo as últimas pesquisas Atlas e XP/Ipespe, o Planalto avaliou que para continuar com o apoio de parte do empresariado —e manter alguma chance eleitoral em 2022— é preciso vacinar. O problema é que agora o país ainda luta no mercado mundial para conseguir os imunizantes.
O ostracismo vivido por Zé Gotinha até esta semana se traduz em números: de acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação pela agência de dados Fiquem Sabendo, o investimento em campanhas de imunização feitas pelo Governo caiu 36% em dois anos. Em 2018 foi gasto 71,5 milhões de reais, no ano seguinte foram 58 milhões de reais e, no ano passado, 45,7 milhões de reais. Correndo contra o tempo, o Planalto contratou em janeiro uma agência para produzir vídeos publicitários sobre a vacinação contra a covid-19. O material, que ainda está sendo elaborado, deve custar 50 milhões e contar com o mascote Zé Gotinha.
A relação de Bolsonaro com o mascote não é das melhores. Desde o início da pandemia, em março de 2020, o mandatário sempre deixou claro o seu desprezo pelas vacinas, em especial a Coronavac, chamada por ele de forma preconceituosa de “vacina chinesa”, produzida no Instituto Butantan com a chancela de seu rival político João Doria, governador de São Paulo. Antes do retorno do Zé Gotinha de fuzil, alguns internautas tentaram emplacar um novo mascote, o Capitão Cloroquino, personagem que —assim como o presidente fez— defende o uso de medicamentos sem comprovação científica contra a covid-19. Não vingou.
Zé Gotinha é um personagem que coleciona títulos. A caminhada rumo ao primeiro deles começou em 1986. Foram oito anos até que a vitória veio, em 1994, com o certificado de erradicação da doença responsável pela paralisia infantil —representado pelo vilão Monstro Perna de Pau nas propagandas da TV. De lá para cá o boneco alvo e sorridente, símbolo do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, acumulou mais vitórias do que o Canarinho amarelo da seleção brasileira de futebol: foram dezenas de campanhas de imunização ao longo de mais de três décadas, contra gripe, tétano, sarampo, rubéola… Mas aí veio 2020 e Zé Gotinha se viu enredado em disputas políticas e sem poder trabalhar por falta de vacinas contra o novo coronavírus.
Mais do que um mascote, Zé Gotinha se tornou símbolo de um programa de saúde pública forte e eficiente, um caso de sucesso que fez do país uma potência global em coordenação logística e campanhas de vacinação. Com milhares de postos de saúde espalhados pelos municípios brasileiros, a capilaridade do Sistema Único de Saúde faz com que o Brasil tenha a capacidade de vacinar até 60 milhões de pessoas por mês, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O mascote chegava a aldeias remotas de Roraima, atendia comunidades ribeirinhas isoladas no Amazonas e também levava imunizantes aos menores municípios do interior cearense. Para efeito de comparação, os Estados Unidos, que começaram sua campanha de imunização contra a covid-19 em dezembro, atingiram apenas em março a marca de 82,5 milhões de vacinas aplicadas. Mas sem vacinas, o Brasil ainda engatinha: foram 8,7 milhões de pessoas imunizadas com ao menos uma dose contra o novo coronavírus até a segunda semana deste mês.
O personagem foi criado com o objetivo de aproximar o público infantil do universo das vacinas, frequentemente associado a agulhas, injeções e dor. O imunizante contra a poliomielite foi um dos primeiros a ser aplicado em gotas —daí o formato de coxinha da cabeça do Zé. Seu nome foi escolhido em concurso com crianças de todo o país. Já batizado, o personagem estrelou desenhos animados, estampou cartazes, ganhou música da Xuxa e marcou presença nos postos de vacinação e unidades básicas de saúde do país. Posteriormente ele ganhou uma família de Gotinhas em uma tentativa de ampliar o escopo de sua popularidade para outras parcelas da população, como os idosos, alvo de campanhas de imunização contra a gripe, e as gestantes.
Lula não foi o único saudoso do mascote. Em uma live em fevereiro o presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Carlos Eduardo de Oliveira Lula, foi além, e afirmou que o mandatário está “matando” o mascote, como uma metáfora para se referir à inação do Governo no combate à covid-19. “A postura do Bolsonaro vai afetar todo tipo de vacinação. Bolsonaro está matando o Zé Gotinha”, disse. Bom, agora ele está de volta. E armado até os dentes