Canto do Povo de Um Lugar
Janio Ferreira Soares
Ainda não vi o documentário de Chico Kertész sobre o axé, mas me comove a bela canção que Caetano Veloso gravou com o Bendengó e que empresta o subtítulo ao filme, ainda hoje soando que nem reza penosa, por vezes até doída, como se feita para curar asa de Casaca-de-Couro ferida por estilingue certeiro.
Me lembro de tocá-la num violão folk comprado na A Modinha, da Praça da Sé, inesperado presente de minha tia Belica depois de receber o pagamento de umas rendas trançadas na agilidade de seus bilros endiabrados.
E aí eu ficava naquele lento compasso de Dó, Lá, Mi, Fá, Sol – e um acorde mais complicado no final -, às vezes emendando com London London, outras com canções diversas, essas não necessariamente saídas da cachola do quase jovem compositor baiano. O ano era 1975; o LP se chamava Joia; Caetano tinha 33; João Santana, 22 e eu, então com 17, ainda vivia na escola acentuando o ó do adereço que nomina o disco, senão a palavra não luzia.
No trailer do filme vi Cristóvão Rodrigues dando seu depoimento e me lembrei de que conheci o Bendegó através de seu programa na Rádio Sociedade da Bahia, onde ele sempre tocava Chorada, uma doce balada composta por Gereba e Patinhas, que eu ouvia comendo pão doce com Ki-Suco sentado com amigos na calçada de alguma casa abandonada nas calmas noites de Glória.
Patinhas, muitos sabem, era o apelido de João Santana quando ele sequer sonhava que viria a ser tão poderoso quanto o dono da moedinha número um que lhe inspirou a alcunha. Puxo o novelo, porque acho que na solidão da prisão ele deve ter feito uma bela retrospectiva de sua vida e certamente se lembrou dessa gravação com Caetano, quando, por letrista, talvez tenha ficado só observando seus colegas venerando a noite e o Sol de todo dia, sem jamais imaginar que, décadas depois, o amanhecer lhe nasceria quadrado justamente em terras onde raiou Leminski.
Mas voltando ao documentário, acho que quase tudo já foi dito nos depoimentos das pessoas que viveram o movimento. Quanto a mim, se algo me fosse perguntado, apenas acrescentaria a genial história de quando Elomar, em pleno auge do Fricote de Luiz Caldas, veio se apresentar no aniversário de Paulo Afonso.
Conto-a, novamente. A programação previa um concerto do velho catingueiro num palco e depois um Trio Elétrico entraria. Praça lotada, ele sobe acompanhado apenas de seu violão e, nas primeiras dedilhadas, uma meninada postada aos seus pés, grita: “toca Nega do Cabelo Duro!”.
Nem precisa dizer que ele foi embora danado da vida, enquanto a galera, nem aí para a cantoria que não houve, dançou a noite toda ao som do ritmo que, se abriu caminho para a vinda de Michael Jackson ao Pelourinho, também mostrou Reinaldo, do Gera Samba, de sunguinha, pegando sabonete na banheira do Gugu. Axé! .
Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura de Paulo Afoso, na margem baiana do Rio São Francisco.
Lindo.comovente.
FORMIDÁVEL!!!