Dor
Gilson Nogueira
Naquele silêncio havia arte.Era na Salvador que eu suspirava até o início dos anos 2000. No ar, véspera do 11 de Setembro de 2001, sons inaudíveis, paradoxalmente,perceptíveis, a cada pincelada, na tela sensorial do soteropolitano criado no centro da Cidade da Bahia, orgulhoso por haver recebido, um dia, ao lado do amigo vanguardista Alfredinho Rios, da velha turma do bairro de Nazaré, da boca do genial Mário Cravo Júnior, em seu atelier, perto do Rio Vermelho, o convite para que qualquer “trabalho” que eu fizesse, dali em diante,o mostrasse. Tudo porque o mestre maior da escultura em plagas baianas, admirado de Jequié a Nova Iorque, gostou tanto do que viu, quando o apresentei algumas pinturas, em tinta guache,sobre cartolina,para concorrer em uma mostra de arte moderna, em Brasília, que ainda sacudia a poeira que os candangos experimentaram, pela primeira vez, aosalvoreceres inaugurais do que seria a capital do país, substituindo o privilégio que detinha a cidade do Rio de Janeiro.
Os “trabalhos” foram elegantemente devolvidos, pelos organizadores da mostra,acompanhados de agradecimento e, no canto do envelope, escondido, nas entrelinhas,incentivo ao artista plástico que poderia encantar o planeta, mas que, por obra do destino, trocou os pincéis, culpando o cheiro da tinta, pela caneta. O deslumbramento com a arte de Mário Cravo, me acompanha, desde jovem, como o encanto pelo Centro Histórico de Salvador,sua paisagem, com destaque para a da Baía de Todos os Santos, seus cheiros, suas cores, sua gente, seus ritmos, desde a cadência do samba de Batatinha aos compassos santos dos timbaus do Muzenza, sem falar naquela coisa inexplicável que só a primeira capital do Brasil tem, a magia em cada canto.
Ao visitar, semana passada, o Jardim de Nazaré, suspirei fundo. Experimentei, ali,um gosto de lágrima escorrendo na alma, ao fitar o palacete colonial que abrigava o Colégio Nossa Senhora de Lourdes literalmente entregue aos ratos e às intempéries. Caminhei silêncios misturados à saudade dos anos de mocidade, chocado com o abandono do casario antigo. Revi imagens em contraste com a violência urbana. De todos os tipos. Agora, enquanto o cambacica chama por minha netinha nascida na terra de Caymmi e o Capelinha passa fazendo-me sentir menino, de novo, dou nota zero a quem deixa minha cidade apodrecer por dentro. Abram os olhos. Salvador está doente!
Gilson Nogueira é jornalista, colaborador da primeira hora do BP