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CRÕNICA/ COTIDIANO
ARRUDA,ADEMAR DE BARROS E PABLO
Janio Ferreira Soares
Na sala de espera do oftalmologista, dois vizinhos de cataratas comentam sobre os últimos acontecimentos. Apuro meu ouvido e consigo pescar algo sobre o aumento dos aposentados, o preço dos ansiolíticos e, claro, sobre o escândalo político do momento, já que nossa gente engravatada não se cansa de mostrar o seu valor. Monetário, diga-se.
Do meu lado esquerdo uma senhora choramingando um misto de colírio e lágrimas me cutuca com seu roliço cotovelo e sussurra, com aquele semblante característico das atrizes de um filme de Almodóvar – ou de alguma novela mexicana -: “fariam a mesma coisa, esses dois descarados!”. Antes de esboçar qualquer forma de contato, uma mocinha delicada inclina minha cabeça pra trás e pinga uma gota de colírio em cada olho, o que basta para me transformar num lacrimoso coadjuvante daquele dramalhão latino. “Mui prazer, mi nombre es Pablo”.
Mais tarde, já no táxi, óculos escuros pra não dar bandeira e evitar lampejos pós-dilatação, o motorista puxa assunto. Como percebo que não há outra opção senão entabular uma prosa movida a pagode romântico e a aroma de alfazema, vou direto ao que interessa. “E Arruda, hein?”. Antes que ele discorra a típica verborragia daqueles que têm a solução para todos os problemas do mundo, me lembro que até há pouco a deixa era: “e o Zuleido, hein?”, que veio antes de: “e o Sarney, hein?”, que, por sua vez, sucedeu a: “e o Delúbio, hein?”, o que prova que Brasília roda, roda e parece que nunca surge um minuto de comercial.
O mais preocupante é que a esperada indignação das pessoas está dando lugar a uma impotência acrescida de pitadas de normalidade, muitas vezes acompanhada de uma conivência do tipo: “eu não, mas se alguém encher as meias e depois me der um apartamento em Paris, tudo bem”.
Chego ao meu destino, me despeço de mais uma sumidade autônoma e observo que logo a frente um senhor acena para outra viagem movida à política e à voz de Belo, naturalmente. Pelo semblante deve ser do tempo de: “e o Ademar de Barros, hein?”. Só me resta encarnar Pablo, meu personagem latino, e seguir cantarolando Tu Me Acostumbraste.
(Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura e Turismo de Paulo Afonso, na região do Vale do São Francisco )